Doença Falciforme

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O termo doença falciforme (DF) descreve um grupo de alterações hereditárias. “Hereditária” significa que a doença é passada por genes, dos pais para seus filhos e, portanto, não é contagiosa. Pacientes com Anemia Falciforme clássica (HbSS), com alteração em 2 genes (herdados do pai e da mãe), costumam ter sintomas, que começam na infância e se apresentam de forma intermitente, incluindo cansaço, palidez, mucosa dos olhos amarelada (icterícia) e crises de dores intensas. Alguns pacientes podem ter complicações associadas ao quadro de anemia hemolítica crônica (com necessidade de transfusão, e risco de sobrecarga de ferro e aloimunização) e de eventos trombóticos agudos, que podem ser potencialmente letais, como crises vaso oclusivas e síndrome torácica aguda.

Entendendo o mecanismo da doença

Esse grupo de alterações hereditárias dos glóbulos vermelhos (também conhecidos como hemácias ou eritrócitos) está associado a alterações na hemoglobina. A hemoglobina é uma proteína que se encontra dentro dos glóbulos vermelhos e que transporta oxigênio por todo o corpo. As células dos diversos tecidos do corpo precisam de um suprimento constante de oxigênio para funcionar bem. Normalmente, a hemoglobina nos glóbulos vermelhos absorve oxigênio nos pulmões e o transporta para todos os tecidos. Os glóbulos vermelhos de um adulto normal contêm hemoglobina normal (HbA) e têm a forma de um disco bicôncavo. Esta forma permite que as hemácias sejam flexíveis e possam se mover através de grandes e pequenos vasos sanguíneos, para fornecer oxigênio.

Figura 1: Representação esquemática da hemoglobina dentro da hemácia normal e seu fluxo dentro do vaso sanguíneo normal

Pessoas com DF têm hemoglobina anormal em seus glóbulos vermelhos (também conhecidos como hemácias ou eritrócitos). Na DF, a pessoa herda dois genes anormais de hemoglobina, um de cada pai. Caso tenha herdado o gene de apenas um dos pais (HbAS), não terá a doença, será apenas um portador assintomático e poderá passar este gene aos filhos.

Figura 2: Modelo de herança da DF a partir de pais com traço falciforme

Fonte: Manual Doenças Falciformes (MS, 2012)

Em todas as formas de doença falciforme, pelo menos um dos dois genes anormais faz com que o corpo produza hemoglobina S (HbS), também  chamada de hemoglobina falciforme. Quando uma pessoa tem dois genes de hemoglobina S (Hemoglobina SS), a doença é chamada de Anemia Falciforme (AF). Este é o tipo mais comum e, geralmente, o mais grave. O gene da  hemoglobina S também pode, por exemplo, ser combinado com gene da talassemia beta (Hemoglobina Sβ) ou com a hemoglobina C (Hemoglobina SC), o que também levam a formas de doenças falciforme, só que geralmente mais leves. No Brasil, a incidência de DF (HbSS) varia de 1:650 nascidos vivos na Bahia a 1:35.000 nascidos vivos nos estados do Sul. Já a incidência de traço falciforme (HbAS) varia de 1:17 nascidos vivos na Bahia a 1:65 nascidos vivos nos estados do Sul.

A hemoglobina S não é como a hemoglobina normal. A HbS pode se polimerizar e formar hastes rígidas dentro da célula vermelha, mudando-a para a forma de uma foice (falcização). Isto provoca danos na hemácia, que dura menos tempo na circulação, o que leva ao quadro de anemia.

As células em forma de foice não são flexíveis e podem se aderir nas paredes dos vasos, causando um bloqueio que retarda ou interrompe o fluxo de sangue. Quando isso acontece, o oxigênio não pode alcançar os tecidos próximos. Dessa forma, estes pacientes apresentam crises de dor nos locais de interrupção da oxigenação, ao que chamamos de “crises de vasoclusão ou crises falcêmicas”. As crise podem ocorrer de forma espontânea ou podem ser desencadeadas por situações estressoras, como uma infecção, por exemplo. Os pilares da vasoclusão incluem o fenômeno da falcização, a maior interação entre células endoteliais, leucócitos e plaquetas, a vasculopatia (doença dos vasos) proliferativa, o estado inflamatório crônico e a hipercoagulabilidade.

Pacientes co AF têm risco aumentado de infecções por múltiplos fatores, especialmente o hipoesplenismo, causado por infartos esplênicos, que levam a uma redução da função do baço, com aumento no risco de infecção de forma geral, e em especial por bactérias encapsuladas. O hipoesplenismo desenvolve-se nos primeiros meses ou anos de vida. Além disso, a perfusão tecidual reduzida, a presença de cateter permanente (muitas vezes necessário em pacientes que necessitam de transfusão crônica) e a hipoventilação pulmonar também são fatores importantes no aumento do risco de infecções identificado nestes pacientes.

Figura 3: Representação esquemática da fisiopatologia da DF

  Fonte: Adaptado de Manual Doença Falciforme (MS, 2012)

Manifestações Clínicas

De forma geral, podemos dizer que só terão sintomas quem as duas cópias do gene alterado. Quando se tem apenas uma cópia do gene alterado (traço falciforme), não ocorre anemia nem crises de dor, porque a hemoglobina normal acaba compensando a alterada, e a única preocupação deve ser a de passar a doença para os filhos.

A anemia falciforme de fato é caracterizada por sintomas como cansaço, palidez, mucosa dos olhos amarelada e crises de dores intensas, que se apresentam de forma intermitente (em crises de dor e/ou anemia). O quadro aparece na infância e normalmente necessita de transfusões. É uma anemia crônica, ou seja, o paciente pode ter valores de hemoglobina basais razoavelmente baixos e não apresentar sintomas. Quando um paciente tem uma crise, com queda rápida da hemoglobina, as primeiras formas de reação do corpo são o aceleramento do coração (taquicardia) e o aumento da força de bombeamento do coração (débito cardíaco). Caso o paciente tenha algum problema no coração, ou caso a anemia seja muito intensa, o coração poderá apresentar sinais de falha nesta tentativa de ajuste, e os sinais disso são falta de ar, dor no peito, redução na pressão arterial, além de confusão mental e desmaios, por redução na oxigenação cerebral. No entanto, na maior parte do tempo, a anemia é crônica, o corpo se adapta aos valores mais baixos de hemoglobina, e a sobrecarga ao coração não acontece de forma tão evidente, e o paciente tem, portanto, poucos ou nenhum sintoma.

 

Diagnóstico

Em geral, a presença da HbS pode ser detectada no Teste do Pezinho e confirmada pelo teste chamado Eletroforese de Hemoglobina. A eletroforese de hemoglobina será importante para identificar os tipos de hemoglobina produzidas pelo paciente e classificar a doença. Para o diagnóstico final também é importante fazer o Hemograma para identificar o valor da hemoglobina (que estabelece se há ou não anemia) e procurar se há destruição aumentada de hemácias utilizando um conjunto de exames, que chamamos de Provas de Hemólise (reticulócitos, bilirrubinas, DHL, haptoglobina). Os achados morfológicos do hemograma podem demonstrar alterações na forma da hemácia.

Figura 4: Representação esquemática da eletroforese de Hemoglobina nos diversos tipos de DF

Fonte: Manual Doença Falciforme (MS, 2012)

 

Tabela 1: Diferencial laboratorial das hemoglobinopatias mais comuns
Diagnóstico
Gravidade clínica
Hb (g/dL)
VCM
Reticuló-
citos (%)
Morfologia
Eletroforese de Hb (%)
SS
moderada a grave
7,5 (6,0-9,0)
93
11 (4-30)
Hemácias em foice,em  alvo e eritroblastos  frequentes
S: 80-90
F: 2-20
A2<3,5
SC
leve a moderada
11,0 (9,0-14,0)
80
3 (1,5-6,0)
Hemácias em alvo frequentes
Hemácias em foice raras
S: 45-55
C: 45-55
F: 0,2-8,0
S/Beta+
leve a moderada
11,0 (8,0-13,0)
76
3 (1,5-6,0)
Discreta hipocromia, microcitose, hemácias em foice
S: 55-45
A1: 15-30
F: 1-20
A2 > 3,6
S/Beta0
leve a grave
8,,0 (7,0-10,0)
69
8 (3-18)
Acentuada hipocromia e microcitose, hemácias em alvo e foice
S: 50-85
F: 2-30
A2 > 3,6
AS
assintomático
normal
normal
normal
normal
S: 38-45
A1: 55-65
A2: 1-3

Fonte: Adaptado de Manual Doença Falciforme (MS, 2012)

Tratamento

Como a anemia é crônica, apesar de precisar receber transfusão de sangue algumas vezes em sua vida, o paciente com anemia falciforme não precisa necessariamente receber sangue em todas as visitas ao médico. Em geral, a transfusão é indicada quando ocorre um aumento de destruição de hemácias, que pode estar associada, por exemplo, a um quadro de infecção, ou quando o paciente se torna sintomático (dispneia, dor no peito, falta de ar), ou ainda quando o paciente vai se submeter a um procedimento cirúrgico.

A suplementação com ácido fólico (uso contínuo) ajuda a manter a produção de células sanguíneas pela medula óssea, já que o aumento na produção das hemácias consomem o nutriente, que pode se tornar deficiente ao longo do tempo.

Algumas complicações podem acontecer em decorrência, principalmente, da vasoclusão e incluem insuficiência renal, crise de dor, síndrome torácica aguda e acidente vascular cerebral (AVC), além do aumento de risco de infecções. Estas complicações resultam em redução de 25 a 30 anos da expectativa de vida das pessoas com a doença, quando comparados com a população geral sem doença falciforme.  O diagnóstico precoce e a prevenção de infecções são fundamentais para manter uma sobrevida maior. Recentemente, diversos aspectos do tratamento reduziram, de forma expressiva, a mortalidade associada às complicações, incluindo:

  • o controle de infecções por meio das imunizações e uso profilático de antibióticos nos primeiros anos de vida;
  • a maior vigilância e adequada orientação para o reconhecimento precoce de quadros como o sequestro esplênico;
  • o diagnóstico e o tratamento da síndrome torácica aguda; e
  • a identificação das crianças com maior risco para desenvolvimento de AVC por meio do uso doppler transcraniano (DTC), combinado com a instituição precoce de transfusões de hemácias, em casos com este exame alterado.

Crises dolorosas são as complicações mais frequentes da DF e comumente a sua primeira manifestação. Essas crises de dor em geral duram de 4 a 6 dias, e podem persistir por semanas. Hipóxia, infecção, febre, acidose, desidratação, exposição ao frio extremo, depressão e exaustão física precipitam as crises. Dores em extremidades, no abdome e nas costas podem estar presentes.. A primeira manifestação de dor, na maioria das crianças, é a dactilite (ou síndrome mão-pé). A dor abdominal pode simular abdome agudo cirúrgico ou infeccioso, ou processos ginecológicos. Em crianças, não é incomum que as pneumonias, principalmente as de base, ocorram com dor abdominal. Quando a queixa é de dor leve normalmente são instruídos a tomar analgésicos e aumentar a ingestão hídrica. Caso a dor seja mais intensa, pode necessitar de hidratação na veia, fisioterapia e analgésicos (com analgésicos comuns, anti inflamatórios e/ou derivados da morfina). Escalas de graduação de dor podem ajudar o paciente, os familiares e a equipe de saúde na decisão do melhor tratamento. Transfusão de sangue pode se necessária em eventuais casos selecionados, que não apresentem melhora com terapia analgésica otimizada.

A síndrome torácica aguda (STA) caracteriza-se por infiltrado pulmonar associado a sintoma ou sinal respiratório (dor torácica, tosse, dispneia, taquipneia etc) e queda dos níveis de oxigenação no sangue. É causada por infecção, embolia de medula óssea necrótica, vaso-oclusão pulmonar e sequestro pulmonar. O tratamento inclui analgesia otimizada, oxigenoterapia com vigilância ventilatória (com espirometria e monitorização da saturação do oxigênio), além de broncodilatadores, antibióticos e transfusão de concentrado de glóbulos vermelhos.

No caso de crianças, as infecções constituem a principal causa de morte. O risco de septicemia e/ou meningite por Streptococcus pneumoniae ou Haemophilus influenzae chega a ser 600 vezes maior do que em crianças sem DF. Essas infecções podem provocar a morte em poucas horas. Pneumonias, infecções renais e osteomielites também ocorrem com maior frequência tanto em crianças quanto e adultos. Os episódios de febre devem, portanto, ser encarados como situações de risco, com  procedimentos diagnósticos mais detalhados e terapia com antibióticos iniciada de forma imediata.

Como consequência de processos vaso oclusivos repetidos no baço, esses pacientes têm a função esplênica diminuída (asplenia funcional), o que leva a uma significativa redução na capacidade imunológica de combater infecções. É um fenômeno que ocorre progressivamente, sendo máxima em torno de 5 anos de idade. Como o baço é o maior e provavelmente o mais importante órgão linfóide, torna-se estratégico iniciar um eficaz programa de profilaxia específico. O risco de meningite pneumocócica é estimado em 600 vezes maior do que na população em geral, e a frequência de bacteremia é de até 300 vezes maior que o esperado para a idade; 90% dos casos ocorrem nos três primeiros anos de vida. A profilaxia antibiótica deve ser iniciada a partir do segundo ou terceiro mês de idade, com penicilina, e deve ser mantido desde o diagnóstico até os 5 anos de idade. Além disso, existe um programa especial de imunização.

As crises aplásticas não são muito frequentes e se caracterizam por sintomas de anemia aguda sem aumento esplênico e com contagem de reticulócitos baixa ou normal (na AF sem esta complicação é esperado que a contagem de reticulócitos esteja aumentada). A queda do reticulócito está associada a uma capacidade diminuída da medula óssea em produzir as células do sangue. Em situações mais graves pode-se ter sinais de choque hipovolêmico. Ocorrem, geralmente, após processos infecciosos, que podem ser relativamente insignificantes. Aplasia grave costuma estar relacionadas com infecção pelo Parvovírus B19. O  tratamento é sintomático, com transfusões de concentrado de hemácias. Costumam ser autolimitadas e têm duração de cerca de 7-10 dias, raramente há recorrência.

Na crise de sequestro esplênico, ocorre um  repentino acúmulo de grandes volumes de sangue no baço. Na anemia falciforme (SS), pode ter seu primeiro episódio a partir dos 5 meses de vida, sendo rara após os 2 anos. Nas outras DF (SC, S/Beta) que permanecem com o baço aumentado, é possível que a crise ocorra em outras faixas etárias. No sequestro, o baço aumenta rapidamente de volume (o que pode ser palpável no rebordo costal esquerdo) e ocorre queda súbita do nível de hemoglobina, com risco de choque hipovolêmico e morte. Esta crise é uma das principais causas de morte nas crianças com DF. Em geral, há rápido aumento do baço com queda importante da hemoglobina até valores inferiores a 5 g/dL e aumento no número de reticulócitos, já que a medula óssea continua em pleno funcionamento. O tratamento envolve correção da queda de volume com soro fisiológico e transfusão de hemácias. Se a crise de sequestro for muito grave, a esplenectomia (remoção cirúrgica do baço) deve ser indicada para crianças acima de 5 anos, uma vez que existe a possibilidade de recidiva. Um esquema de vacinação e de profilaxia com antibióticos deve ser sempre realizada em pacientes submetidos a esplenectomia. Para as crianças com crise graves que tenham menos de 5 anos, um programa de transfusão crônica ou hipertransfusão (para manter a Hb S < 30%) deve ser instituído e os familiares devem ser educados para aprender como se faz a palpação do baço, a fim de identificar seu aumento precocemente.

A formação de cálculos biliares ocorre em 14% das crianças menores de 10 anos, em 30% dos adolescentes, e em 75% dos adultos com anemia falciforme e S/beta talassemia. A frequência para a HbSC é de 40%. Podem ser assintomáticos por muito tempo ou causar sintomas crônicos como, náuseas, vômitos e dor no quadrante superior direito do abdome. As complicações mais comuns são a colecistite, obstrução do ducto biliar e, mais raramente, pancreatite aguda. A retirada eletiva dos cálculos biliares assintomáticos, diagnosticados ao acaso, é assunto controverso. Entretanto, a videocirurgia laparoscópica aumentou a indicação da colecistectomia, em virtude da diminuição das complicações no pós-operatório imediato (STA), e por permitir a realização do preparo transfusional, muitas vezes não realizado nas cirurgias de emergências.

O AVC (Acidente Vascular Cerebral) é sempre uma complicação neurológica grave. A prevalência de AVC em pacientes com DF é de 8% a 10%. Este é um acontecimento relativamente raro na criança (3 casos 100.000 pacientes/ano); entretanto, em crianças com DF, essa taxa varia entre 600-1.000 eventos/100.000 pacientes/ano. Estima-se que 11%, 15% e 24% dos pacientes com DF terão AVC até os 20, 30 e 45 anos de idade, respectivamente. A taxa de morte é de 20% em pacientes não tratados, atingindo níveis de até 50% nos casos associados com hemorragia cerebral. O evento pode ocorrer espontaneamente ou no contexto de alguma complicação aguda como, por exemplo, infecção. Em doentes com menos de 20 anos e em adultos com mais de 30 anos, há predomínio do AVC isquêmico. Entre os 20 e 30 anos, predomina o AVC hemorrágico. Caso o paciente não seja tratado, a chance de recorrência é de 70%. Na maioria dos casos, o episódio subsequente é mais grave e de maior risco e, usualmente, ocorre 2 a 3 anos após o evento inicial. A instituição de esquema crônico de transfusão de hemácias reduz dramaticamente o risco anual de recorrência a menos de 10%. Entretanto, se houver a suspensão das transfusões, independentemente do tempo transfusional, a taxa de recorrência volta a ser de 70%. A triagem precoce e o rastreamento sistemático para identificação de risco de doença cerebrovascular com doppler transcraniano (DTC), bem como, a adoção de programa transfusional regular nas crianças com alto risco, modificam radicalmente o prognóstico, a qualidade de vida e a sobrevida.

A hidroxiureia (HU) é um medicamento que leva a aumento da produção de HbF, da hidratação do glóbulo vermelho e da taxa hemoglobínica, além de diminuição da hemólise, maior produção de óxido nítrico e diminuição da expressão de moléculas de adesão. Até o momento, a HU é considerada a terapia medicamentosa mais eficaz da DF. O medicamento parece ser bem tolerado, podendo prevenir tanto o infarto esplênico quanto as manifestações neurológicas (convulsões, paralisias, distúrbios da fala, cegueira transitória e alterações da consciência). A terapia apresenta risco de toxicidade hematológica, necessitando de monitorização rigorosa com especialista experiente. Além disso, o potencial carcinogênico e teratogênico do fármaco deve ser considerado. O tratamento com HU deve ter duração de pelo menos 2 anos e ser mantido enquanto houver resposta clínica e laboratorial. Cerca de 25% dos doentes não apresentam resposta satisfatória à HU, condição que determina a suspensão do tratamento. Vários estudos demonstraram que, quando bem indicado, o medicamento aumenta a sobrevida de adultos e crianças.

Por fim, temos o  transplante de células-tronco hematopoéticas (TCTH), que é o único tratamento realmente curativo da doença falciforme. Pacientes homozigotos SS ou S/beta em uso de HU e com complicações graves não infecciosas relacionadas a vasoclusão são potencialmente candidatos ao procedimento e devem ter os irmãos avaliados quanto à compatibilidade. Na presença de doador compatível, os familiares devem ser informados sobre essa possibilidade terapêutica e, havendo consentimento, o paciente pode ser encaminhado para concluir a avaliação em centro transplantador com experiência nessa indicação.

A pandemia de COVID-19 traz grande preocupação e existe maior risco de doença grave na DF, por inúmeras características destes pacientes. É recomendada a vacinação para todos os pacientes com anemia falciforme e as variantes (SC e S-beta talassemia). A infecção respiratória pelo COVID-19 pode causar hipóxia, desidratação ou acidose, podendo desencadear crise dolorosa e síndrome torácica aguda (STA). O AVC, hipertensão pulmonar e a doença renal também podem aumentar o risco desses pacientes, que também têm imunidade alterada pelo hipoesplenismo e eventual uso de hidroxiureia. No caso de confirmação da infecção pelo COVID-19 ou raio X de tórax sugestivo de síndrome torácica aguda, o paciente deve ser internado em UTI e iniciar o  tratamento.  Para os pacientes com anemia falciforme, que não tem sinais de COVID-19, deve-se manter o controle clínico e laboratorial usual, passando em consulta com apenas um acompanhante, mantendo os cuidados de afastamento social, uso de álcool em gel e máscara durante todo o tempo que permanecer nas salas do laboratório, consultório e banco de sangue.  A ABHH (Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia) recomenda que transfusões crônicas de hemácias, dentro das indicações habituais, não sejam reduzidas nos casos de doença falciforme. Não há evidências até o momento de que o COVID-19 seja transmitido pelo sangue e os bancos de sangue geralmente pedem intervalos seguros sem febre (ou sinais de infecção) para doação, o que reduz o risco.

Texto elaborado e revisado por
Dra. Mireille Guimarães Vaz de Campos  
Médica  do corpo clínico do INGOH
Especialista em Hematologia – Hemoterapia
CRM-GO 12.406/RQE 22965.
Texto revisado em Junho de 2021.

Referências:
  1. ABHH. Recomendações do Comitê de Hematologia e Hemoterapia Pediátrica – Doenças Hematológicas Benignas e COVID-19. Disponível em:  <https://abhh.org.br/wp-content/uploads/2020/03/HEMATO_BENIGNA_PEDIATRICA_ORIENTA%C3%87%C3%95ES-ABHH_COVID19.pdf>. Visitado em junho de 2020.
  2. MINISTÉRIO DA SAÚDE. PORTARIA CONJUNTA No 05, DE 19 DE FEVEREIRO DE 2018. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Doença Falciforme. Disponível em:  <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/fevereiro/22/Portaria-Conjunta-PCDT-Doenca-Falciforme.fev.2018.pdf>. Visitado em junho de 2020.
  3. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Doença Falciforme. Condutas básicas para tratamento. Brasília-DF, 2012. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doenca_falciforme_condutas_basicas.pdf>. Visitado em junho de 2020.
  4. ZAGO MA, FALCÃO RP, PASQUINI R. Tratado de hematologia. São Paulo : Editora Atheneu, 2013.